O que aconteceu àquela gente?

Minhas leitoras e meus leitores.

Não estou falando das pessoas mortas pela Covid. Esta é outra história cuja veracidade infelizmente jamais poderá ser comprovada. Primeiro, porque terá ocorrido há mais de três quartos de século. Segundo, porque seus quatro principais personagens não se conheciam, viviam sem contato entre si e não teriam não teriam como confirmar estes detalhes.

Mas o melhor é eu contar logo o que aconteceu à senhora Sumiko e aos senhores Yoshikazu, Shigeo e Makoto.

 

(Segunda feira, 6 de agosto de 1945, 7h 45min.)

 

O trabalho de Sumiko deixava-a bastante amolada. Não tanto porque a cansasse fisicamente ou porque de alguma forma a prejudicasse. Simplesmente por ser monótono. Era sempre a mesma coisa: juntava os dois terminais vermelhos, prendia-os um ao outro na posição certa, colocava o fio de solda sobre eles e, com o soldador, ligava-os para não se soltarem mais. Seria alguma coisa interessante de fazer, claro, mas apenas de vez em quando. Montar um rádio, por exemplo, como um hobby. Seria até mesmo divertido. Mas fazer sempre a mesma coisa, hora após hora, dia trás dia? Chegava a ser amolante. 

Ela não se queixava, no entanto. Era mulher. E em seu ambiente pátrio, isto queria dizer estar disposta a aceitar pacientemente todas as venturas ou azares da sorte. Se aquele emprego tinha a monotonia por problema, ao menos lhe dava meios de suplementar as necessidades da família. Desde que seu marido Kakuei fora convocado, três meses antes que nascesse Fumio, a situação tinha ficado muito difícil. Seus idosos sogros dependiam inteiramente deste filho único. O soldo era baixo. A economia do país estava desorganizada. Os preços subiam a cada dia, especialmente agora, depois de tantos anos de guerra. 

Sumiko não tinha sido preparada para sair de casa. Era delicada, mimosa, havia sido educada para ser uma esposa nos moldes tradicionais. Sabia preparar as refeições caseiras com um capricho e um tempero tais que faziam seu marido declarar ser a ração militar o pior de todos os males da guerra. 

Interrompendo por um instante a operação de solda, Sumiko verificou o relógio. Só então se lembrou que tinha esquecido a merenda de Fumio! Ela o havia deixado na creche que recebia os filhos das operárias logo que chegara. Dentro de uma hora, todas as crianças estariam comendo a refeição que suas mães lhes teriam levado. Fumio, no entanto, ficaria obrigado a tomar a reles sopa que a creche dava às muito pobres para terem o seu próprio lanche. 

Ficou muito contrariada. Se havia algo que a aborrecia, era que seu filho ficasse em situação inferior, frente às outras crianças. Seu orgulho materno - que lhe segredava ser ele o menino o mais lindo do mundo! - ofendia-se por qualquer coisa. E foi assim que, ao invés de soldar os terminais vermelhos um no outro, ligou um preto no lugar de um deles! 

No instante em que entregava a peça à companheira à sua esquerda para a operação seguinte, o supervisor a interrompeu. Azar! Justamente naquele momento tinha ele de estar junto a seu setor de trabalho? O homem segurou-lhe a mão forte e bruscamente. Com voz esganiçada a descompôs: estavam em guerra! Onde estava o espírito patriótico que ela cantava possuir nos intervalos em que toda a fábrica, em coro, praticava o civismo no ensaio de hinos marciais? Era assim que honrava o Imperador? Sabia que, invertendo a solda dos terminais daquela maneira, punha em perigo a vida de um, de dez, de cem homens da marinha de guerra?

Sumiko quase desmaiou de susto, de medo e de vergonha... 

Vamos deixá-la por um momento para saber o que aconteceu ao mecânico Yoshikazu!

 

(Agora são 8h 00min)

 

Dentro de quinze minutos o trem noturno chegaria à estação. Yoshikazu ajeitou-se como pôde na poltrona. O banco era confortável, mas o braço engessado o incomodava. Não podia encontrar uma posição mais cômoda, Ele trabalhava no estaleiro em Kure quando uma pesada furadeira elétrica havia escapado das mãos de outro operário e caído sobre seu pulso esquerdo. Não tinha sido coisa grave. Apenas uma fratura simples. Mas ele tinha ficado impossibilitado de fazer qualquer coisa. 

Meditava: as coisas na vida podem ser ruins e boas ao mesmo tempo. Não fosse o acidente, não poderia aproveitar para dar uma escapada à sua cidade de origem. Teria mesmo que ficar agora sem trabalhar. Era a oportunidade para por em dia tantas coisas que haviam ficado para ts, desde que fora trabalhar na construção naval. Ele havia sido declarado incapaz para o Serviço Militar, mas não para a vida civil. Assim alegrava-se por poder contribuir de alguma forma para os sucessos militares do país. Havia sido homenageado de maneira especial por haver fixado o ultimo dos rebites do Yamato, o maior encourado da marinha. Verdade que os americanos o haviam afundado no mês de abril passado, mas que importa? Ninguém podia tirar a sua gria. De qualquer maneira, pom, havia muitas coisas que ele precisava regularizar em sua vida particular. As pessoas não são apenas gente de grande ou pequena importância. E ele precisava providenciar coisas de sua família. 

Uma delas era acertar a documentão da pequena casa que tinha herdado de seus pais. Só de pensar nisso ficava aborrecido. Sabia que o dia pela frente seria muito cheio das complicões legais que todos, parece, gostavam muito de cultivar. E isto o amolava. Era homem extremamente prático. Não podia entender por que motivo devia atender a tantas formalidades e responder a tantos quesitos, simplesmente para tomar posse de uma propriedade que já era sua, até por uma questão natural: não tinha outros irmãos, era o único da família com direitos à herança. Sua esposa precisava de um amparo, caso ele viesse a faltar. 

O operário consultou um pequeno caderno de anotações. Conferiu os enderos. Tudo certo. Logo que o trem chegasse ao ponto final da linha, iria diretamente para o edifício onde ficava o escritório do Dr. Iwakura, junto à ponte Inaribashi. Conhecia bem o lugar. Já tinha estado ali anteriormente. Discutir o caso com o advogado lhe tomaria boa parte da manhã. Depois, conforme a hora, procuraria um lugar para se alojar ou então iria comer. Talvez o melhor fosse encontrar primeiro uma hospedaria, deixar lá sua bagagem e então procurar um restaurante. 

O trem diminuía a velocidade. Aproximava-se da estação. Yoshikazu levantou-se e começou a preparar-se para descer. Embora a cidade fosse bastante grande, o tempo durante o qual a composição parava para desembarque e embarque de passageiros, era bastante curto. Ele estava bastante ansioso. Precisava acabar aquelas providências rapidamente e voltar para casa. 

Agora vamos deixá-lo por um momento e contar o que aconteceu ao Sr. Shigeo.

 

 (Agora são 8h 15min.)

 

Shigeo apertou as porcas cuidadosamente. O novo carburador se ajustou perfeitamente ao motor. A preocupação do operário era a de que tudo desse certo. Os inspetores da Força Aérea estavam atentos a seu trabalho. Fazia quatro semanas que ele, juntamente com os demais companheiros de sua equipe, vinha desenvolvendo aquele projeto. Embora fosse apenas mais um componente de um motor, poderia vir a representar papel importante na economia do país. Afinal, uma das maiores ameaças ao esforço de guerra estava exatamente na possibilidade de um estrangulamento no sistema de suprimento de combustíveis para os aviões. Por que não possuía reservas petrolíferas, o país importava tudo o de que necessitava, não apenas para a gloriosa Força Aérea, mas para todo o seu efetivo militar. E as necessidades civis, evidentemente. 

Por isso o novo carburador fora planejado objetivando conseguir o melhor desempenho para o motor, com a maior economia possível. No banco de provas, o motor - um Karigani aperfeiçoado para o bimotor Mitsubishi - foi conectado a uma bateria de instrumentos, que permitissem a medição de seu consumo, rotação e potência. A mesma montagem havia sido feita anteriormente utilizando um carburador convencional para termo de comparação. 

Acionado o arranque, começou o funcionamento. Em dez minutos os resultados comprovaram suas expectativas. Uma simples modificação no sistema de fluxo do carburador e na válvula de entrada, com um dispositivo para o pré-aquecimento do ar, reduzia muito o consumo de gasolina. 

Shigeo ficou radiante. O sisudo rosto dos oficiais revelava certa satisfação. Aquilo representava muita coisa para o mecânico. Além do orgulho e do prazer interior de estar contribuindo de forma ainda que pequena para apressar a vitória, significava um pouco mais de prestígio junto aos superiores da fabrica que lhe tinham dado a oportunidade para a experiência. Talvez significasse um aumentozinho de salário, o que não seria mau. Toda gente estava passando por momentos difíceis e uns yens a mais não seriam coisa de desprezar. 

- Os senhores acham que o meu carburador está aprovado? perguntou ele. 

Ele esperou a resposta contendo a respiração. Esta aprovação podia ser uma reviravolta completa em sua vida e na de sua família. 

Mas preciso parar aqui. Vamos deixá-lo por alguns minutos para saber o que aconteceu ao idoso Sr. Makoto Kikuta.

 

(Agora são 8h 30min)

 

O porto de onde partia o barco para Itsuku-shima ficava na boca norte do delta do rio Ota. O embarque já tinha sido autorizado e os passageiros entravam em ordem. A partida seria dentro de mais quinze minutos. Apesar do alarma antiaéreo que soara pela primeira vez às seis e meia da manhã, não havia maior preocupação em meio ao grupo. Aquilo já se repetia por vários dias e nenhuma bomba havia caído sobre a cidade. Naquela manhã um pequeno avião de reconhecimento tinha sobrevoado a região, mas desaparecera no oriente. 

Os dois velhinhos, Makoto e sua esposa Myoko, procuravam seus lugares a bordo do barco sem maior pressa. Ainda que a guerra houvesse mudado muito os costumes e as tradições nacionais, qualquer pessoa idosa era tida na mais alta conta por todos os mais novos. O respeito pelos cabelos brancos, símbolo da experiência da vida, estava gravado profundamente no coração de toda gente. Por isso Makoto não tinha razões para preocupar-se quanto a seu lugar. Estaria certamente reservado. 

Seus pensamentos estavam agora em outro lugar. Imaginava, com alegria, o momento de rever o Santuário de Itsuku-shima, onde tinha ido dois anos antes. Em sua primeira peregrinação àquele lugar, seu objetivo tinha sido rezar pela saúde da esposa, gravemente enferma na ocasião. Um mês depois ela estava curada. Makoto atribuía aos deuses sua total recuperação. Voltava agora à ilha para trazer suas oferendas e fazer nova petição. Pretendia rezar também por seu filho mais novo, prisioneiro dos americanos em Guam. Tinha a certeza de que seria atendido. 

- Vamos diretamente ao santuário? perguntou Myoko em voz baixa e suave a seu marido. 

- Primeiro vamos apresentar nossas oferendas. Depois as nossas preces. Antes que o barco volte, ao meio dia, teremos tempo de ir ao Salão dos Mil Tapetes. Quero ver os tesouros daquele pagode, respondeu o ancião. 

Os marinheiros começaram os preparativos para a partida. O motor já estava ligado e a bomba prosseguia no trabalho constante de pôr para fora a água que também constantemente se infiltrava aos poucos na velha embarcação. Os últimos passageiros tomaram os seus lugares. O barco ia partir com trinta pessoas, a maioria das quais era composta de anciãos. Havia também umas poucas mulheres. Era o grupo usual de peregrinos aos santuários da pequena ilha.

 

(Agora são 8h 47min daquela segunda feira, 6 de agosto de 1945)

 

Meus leitores e minhas leitoras: acho que está na hora de saber o que aconteceu àquela gente: 

- Fumio, sua mãe não mandou sua merenda hoje?

- Mas Dr. Iwakura, a documentação está em ordem, não está? Por que então mais esta exigência descabida?

- O seu carburador é bom, Sr. Shigeo, mas creio que o que foi aperfeiçoado pelo Dr. Nassuno em Kyoto é mais eficiente. Proporciona ainda maior rendimento.

- O barco está atrasado, Mioko. Faz dois minutos que o piloto deveria ter desatracado. Que será que eles estão esperando? Ei, olha lá, um avião americano! 

(Agora são 8h 47min, 58 segundos) 

Hiroshima: adeus!

 

Comentários

Postar um comentário

Quer fazer um comentário? Seja bem vindo/a!

Postagens mais visitadas deste blog

Onoda-san vai visitar seu túmulo!

BOAS VINDAS!