Por que Tonico não voltou a Santa Rita?

Meteu a mão no bolso e tirou o papel, meio amarrotado já, de tanto ser trocado de lugar, dobrado nesta e noutra forma, o pé direito descansando sobre a velha mala de fibra. Não havia dúvida. A rua era aquela mesma, Rua Vespasiano, bairro da Lapa, São Paulo. Mas, e o número? No lugar em que devia logicamente haver uma casa e necessariamente uma numeração, só um terreno cercado de tabiques de madeira.

- A senhora sabe me dizer se naquele lugar onde vão construir um prédio, aqui ao lado, morava um senhor de nome Nicolau?

- Olha, moço, aí morava a família do Seu Laláu. Eu nunca soube o nome dele, mas talvez fosse esse. Casado com D. Dininha. O nome dela eu sei, era Leopoldina, mas todo mundo conhecia ela por Dininha.

- São eles mesmos. São meus tios. Eu sou de Minas, sabe, cheguei hoje do interior. Vim passar uns dias com eles, até mandei um telegrama. Cheguei aqui e não existe a casa deles.

- É, eles se mudaram faz dois ou três meses. Disseram que depois iam me mandar o endereço, mas nunca mais apareceram. É difícil a pessoa voltar ao lugar de onde saiu. É tudo tão longe. Mas, e agora? O que é que o senhor vai fazer?

A pergunta ficou repetindo como um eco nos ouvidos de Tonico.

Respondeu-a de qualquer jeito, agradeceu, e saiu, procurando o ponto de ônibus para o centro da cidade. Não conhecia mais ninguém. Agora o jeito era voltar para Santa Rita do Sapucaí. Que sorte haver trazido dinheiro para a passagem de volta.

Por que motivo toda gente sai de casa durante o dia, aqui em São Paulo? Os ônibus estão cheios o tempo todo. É difícil arranjar lugar. O povo todo fica se apertando, empurrando, cada um parece que quer passar por cima do outro, três quadras antes de descer cada um já vai passando a roleta, batem com o cotovelo no nariz da gente, quando a pessoa chega no ponto final, está mais cansada do que se tivesse vindo a pé.

Minha carteira?! Meus documentos?! Quem será que me tirou tudo do bolso? Foi na hora daquela empurração, lá atrás. Tenho a certeza.

- O senhor não viu alguém tirar a minha carteira do bolso'?

O trocador olhou para ele assustado e já encrespando: - Está brincando comigo? Olha bem para a minha cara!

Meu Deus, como é que eu faço agora? Não tenho dinheiro para viajar. Nem para comer. Nem documento para mostrar. Se a policia me pedir, o que é que eu vou dizer? Felizmente tinha umas moedas para pagar a passagem...

Foi caminhando até a Rodoviária, sem saber ao certo o que faria quando chegasse lá. Encontrar algum amigo na fila do ônibus para Santa Rita, quem sabe? Mas como é que eu vou mostrar o documento se o motorista me pedir? Acho que o melhor é eu procurar a Polícia primeiro e dizer que fui roubado. Quem sabe eles não dão um jeito? Até pode ser que eu consiga um passe. Mas, e se o guarda não acreditar na minha história? E se ele achar que eu estou dando um golpe? Sei lá, tem uns polícias por aqui que metem medo na gente, só pela cara. Vi um quando cheguei de manhã, nossa! Não, não vou falar com eles, não. O melhor é eu ir para a saída da cidade e descobrir um caminhão que vá para Santa Rita. Posso até conseguir uma carona. É, esse talvez seja o único jeito de sair desta. Depois que eu voltar, poderei tirar novos documentos, desgraçado do ladrão, me deixou mal.

Disseram-lhe em que direção caminhar para encontrar a saída para o sul de Minas. Só não lhe disseram a que distância ficava da Rodoviária! Quando chegou perto da guarita do guarda rodoviário a mala já pesava dez vezes mais. As mãos estavam doídas de carregar aquele peso. Os pés deviam ter crescido duas vezes mais, era o que parecia. Assentou-se no meio fio da rodovia e tirou os sapatos. Apertou os dedos doloridos, deixou-os de fora por alguns momentos.

Fazia quatro horas que não comia nada. E olha que o que comera da última vez, fora apenas um pastel gorduroso e um pingado... O estômago era agora um grande oco por dentro da barriga. Sentia uma necessidade enorme de satisfazer suas reclamações de comida. Mas tudo o que lhe sobrava agora era uma nota de vinte, que por acaso tinha ficado no bolso de trás. Bem que lhe tinham dito: não devia carregar o dinheiro todo junto. Devia pôr um pouco em cada bolso. A gente só sabe que recebeu bons conselhos, porque deixou de fazer o que nos disseram. Agora era tarde.

"Proibido pegar carona junto à Polícia Rodoviária". O cartaz deixou-o ainda mais abatido. O guarda tem que me ajudar. Onde é que eu vou conseguir parar um caminhão e descobrir se ele vai ou não para Santa Rita? Não custava nada. Mas ordens eram ordens, disse o patrulheiro, até que atenciosamente. Sentia muito. O máximo que podia a fazer era dar-lhe um pouco de café. Da garrafa térmica.

Tonico agradeceu. Bebeu mais do que a educação mandava. A fome sempre foi má conselheira. Com os sapatos em uma das mãos, a mala na outra, caminhou pela estrada até um ponto, suficientemente distante da Polícia Rodoviária, onde julgava poderia conseguir uma carona.

Santa Rita do Sapucaí! Será que tal lugar no mundo existia mesmo? Tinha vindo mesmo dali? Mas por que será que nenhum caminhão vai naquela direção? Todos os que param - e são poucos! - cada um vai para um destino diferente. Há uns que riem de mim quando digo para onde quero ir! É porque não é com eles que aconteceu isso.

Precisava esvaziar-se! Onde? Tudo descampado ao redor. Não podia simplesmente aliviar-se ali, aos olhos de quem quer que passasse na estrada. Afinal havia carros com senhoras e moças passando. Assentou-se outra vez, na guia do asfalto. Colocou a mala à frente das pernas, tirou o paletó, cobriu-se da melhor maneira que pode, e deixou correr. Ah! Mas a gente poder se esvaziar é um alívio que eu vou te contar!

A tarde começava a cair. E a fome? Vou voltar para o centro, passar em um botequim, comer qualquer coisa. Ainda tenho vinte reais. Quem sabe se eu jogasse fora algumas das coisas que trouxe na mala? Ficaria mais leve, mais fácil de carregar. Não, posso precisar de tudo isso aí. Quando voltava, passou pela guarita. O guarda amigo já havia passado o lugar a um colega, mal encarado esse.

Sabia que não devia gastar um centavo com bebida. Precisava era comer, para satisfazer a fome. Era um copo de leite, um pão, quem sabe sobrava um pouquinho para o dia seguinte? Depois que comeu, saiu procurando um lugar para descansar o corpo. Na Rodoviária do Tietê fica muita gente dormindo. Ali mesmo, perto da Polícia. E se eu fosse para lá?

Quando chegou já estava apertado outra vez. Informaram-lhe que no outro andar havia um sanitário. Pago! Até para fazer cocô a gente tem que pagar em São Paulo. Não havia outro jeito. Já fazia horas que ele estava apertado. Gastou o último trocado. E foi lá que ele se olhou no espelho!

Como estava desfigurado! O rosto estava gosmento, a pele melada do suor de todo o dia. Os cabelos, desarrumados. A barba parecia escura, por fazer. Lavou-se o melhor que pode, enxugou-se na toalha de papel, penteou o cabelo. Coisa horrível é a gente sentir-se enojada de si mesma. Sentia-se mal cheiroso. Ainda no sanitário aproveitou para trocar a camisa. Era ruim ter que vestir uma roupa limpa estando tão sujo. E a única coisa que tinha feito fizera era andar de um lado para outro na cidade grande!

Desceu para o outro andar e ficou olhando o povo que passava. Todos apressados, o movimento era grande, embora fosse noite. Toda a gente da cidade, outra vez. Será que todo mundo viaja aqui? Não fica ninguém em casa?

Assentou-se em uma das cadeiras de plástico e ficou olhando. Quem sabe passa algum conhecido? Será que vou ter sorte? Curioso. Passam mil pessoas pela gente. Não existe nem mesmo uma pessoa igual à outra. É por isso que posso esperar encontrar um conhecido. Todo mundo é diferente. Diferente e indiferente. Ninguém se importa comigo. Estou aqui, perdido, sem saber o que fazer. Toda gente passa depressa, nem liga. Mesmo que eu pedisse uma esmola. Não, mil vezes não. Pedir esmola é vergonha. Não posso fazer isso com essas mãos de gente honesta. Não vou pedir nada. Mas, como é que eu vou fazer, meu Deus? Estou que não me aguento de fome, de sono, de cansaço.

Saiu caminhando e procurou um canto qualquer, perto da agência do Juizado de Menores. Tinha muita gente deitada ali, quase não havia mais lugar. E o mau cheiro, nossa! Não, ali é que não ia ficar. Atravessou a Avenida Cruzeiro do Sul e entrou na rua Marechal Odylio Denis. Uma mulher murmurou qualquer coisa, ele nem prestou atenção. Achou um portal mais ou menos de jeito. Assentou-se no degrau e ficou olhando por um pouco o povo que passava, cada vez menos gente à medida que a hora avançava. Só acordou no dia seguinte, quando o varredor o cutucou com a vassoura.

- Vá andando, vagabundo. Tá me atrapalhando o serviço.

Abriu os olhos estremunhado, aquela dor fina no fundo do estômago. A mala! A mala! O varredor não teria visto quem lhe roubara a mala?

Outra vez o olhar de insultado.

- Tá pensando que fui eu, vagabundo? Não me venha com essa. Dá o fora, vamos. Tá atravancando.

Nunca pensei que aquela mala valesse tanto. Com ela na mão eu tinha a sensação de estar agarrado a alguma coisa. Agora estou de mãos abanando. Ela me dava a impressão de que eu não era um cara a toa sem rumo. Fico assim, agora, sem nem ao menos saber pôr as mãos no bolso.

Vagueou sem saber para onde. Uma fraqueza enorme. As pernas parece que não queriam saber mais dele. Sentia-se como se fosse um estorvo, até mesmo para elas, extremidades de seu próprio corpo. O dia começava a clarear.

O homem da carroça de frutas já havia chegado a seu ponto habitual. Estava armando a tenda por cima da mercadoria. Tonico olhou as ponkans. As maçãs. As laranjas. Os pêssegos.

- Moço, sabe, estou com uma fome terrível. Me roubaram tudo, dinheiro, documentos, mala. O senhor me dá uma fruta?

O olhar do vendedor fez com que ele desistisse de esperar melhor resposta. Saiu andando, olhando os sapatos pobres e sujos, cada vez mais fraco. Passou na porta de um bar. Pedir outra vez e receber uma cara daquelas novamente? Não, que esperança! Seria impossível suportar. Hei de encontrar um jeito. Um conhecido há de aparecer. Tenho a certeza. Peço emprestado, depois pago.

A dor no estômago estava tão forte que ela precisou se assentar à beira da calçada, em um lugar qualquer. Não sabia o que doía mais, se a fome ou a tristeza da solidão. Tanta gente passando por ele, nenhum conhecido. Com que velocidade caminhavam, sem vê-lo, ali, necessitado.

Passado o espasmo, ele se levantou, apertando o estômago dolorido. Saiu caminhando e passou por um bar. Viu lá dentro a gente tomando café. O cheiro deixou-o tonto. Na porta havia um estande com chocolates, biscoitos e bombons. Ele chegou perto e ficou olhando.

Não, roubar não. Antes morrer. Que diria minha mãe, cruz. Não, eu sou Antônio dos Santos, não faço estas coisas. Pedir, ainda vai. Roubar, nunca. De jeito nenhum.

- Que é que há, meu chapa? Você está parado aí há dez minutos. Se não vai comprar, desguia, vamos. Não interrompe o trânsito.

Quando passou por outro restaurante, com um estande semelhante, não aguentou. Viu que ninguém estava olhando, disfarçou e agarrou um chocolate. Sorte, meu Deus! Virou a esquina, rasgou sofregamente o papel e banqueteou-se! Os minutos durante os quais a consciência lhe doeu, duraram até o momento em que o cacau se tornou energia dentro de seu corpo. Valeu a pena. Sabia que tinha feito algo errado, que Nhá Zefa não o perdoaria: filho que a gente põe no mundo é pra ser home dereito, num é pra ser ladrão. Perdão, mãe, você nunca passou fome num lugar estranho, sozinha. Não sabe o que é isso.

- Olha, tenho aqui um negócio espetacular. Repare só, suíço legítimo. Barato mesmo, duzentos reais, todo folheado a ouro, automático, 17 rubis. Não deixe passar a oportunidade.

Tonico olhou o indivíduo bem falante, que lhe mostrava o relógio dourado, protegido da vista de outros, mas visível por entre o paletó entreaberto. 

- Da mesma fábrica do Omega.

- O senhor me desculpe, cheguei ontem. Estou sem nada. Me roubaram o dinheiro, documentos, mala, tudo. Não tenho um real. Preciso voltar para Santa Rita e não sei como vou fazer.

Mauro, o contrabandista, tinha uma saída. Estava mesmo precisando de um sócio. Pagava o almoço dele, até adiantado, se o ajudasse numa coisa pequenina. Era fácil. Bastava que Tonico procurasse vender o relógio a algum transeunte. O resto era com ele. Não precisava preocupar-se.

O café com pão, adiantado selou o negócio. Mauro deixou o relógio com Tonico e afastou-se. De longe daria um sinal, apontando um provável interessado. Ele conhecia a psicologia do otário, só de olhar. A prática é tudo.

Quando o velho indicado passou por ele, Tonico lhe disse:

- Olha, tenho aqui um negócio muito bom para o senhor.

O velho parou e ficou ouvindo interessado. Estava a explicação pela metade, quando Mauro chegou:

- Polícia! Teje preso. Está vendendo contrabando!

O susto de Tonico foi genuíno. Aquilo não fora combinado! Com que então o trabalho era roubalheira! Mauro lhe disse:

- Se não quer ser preso, passe o relógio para cá.

Ele lhe entregou o relógio, branco, trêmulo. Tudo menos ser preso.

Mauro saiu andando com o velho. Uns 100 metros depois já lhe havia vendido o relógio por 250.

- Você foi ótimo, cara. Parecia mesmo apavorado. Não precisei nem de caprichar na conversa. O velho caiu como um pato. Olha, aqui tem a sua parte.

Mauro tinha voltado e encontrado Tonico por ali mesmo, ainda estupidificado com o que lhe tinha acontecido alguns minutos atrás. Nem estendia a mão para pegar o dinheiro.

- Vamos, sô! Pega logo. Temos mais trabalho a fazer. Olha, aqui tem outro relógio. É só repetir o truque que dá certo.

- Não posso, isso é roubo. Não tá certo. A gente não pode enganar os outros assim. Além do mais a Polícia está por aí, a toda hora. Não vou fazer mais isso, não.

- Você fará, sim. Fará, porque já fez, você já me ajudou uma vez e agora está nisso até o pescoço. Não tem escape. Se vc tentar tirar o corpo fora dou o serviço. Eu tenho amigos na Polícia, tá? Te agarram agora mesmo e amanhã você vai ver o sol nascer quadrado.

Venderam mais três relógios.

- Está vendo? No princípio a gente fica com medo. Depois, é uma facilidade. Tem muita gente aí com dinheiro. É só você saber aproveitar.

Só teve um problema! No momento em que Tonico tentava vender outro relógio, quem falou “Polícia”, não foi Mauro...


Comentários

  1. Gostei. Com vontade de ler a continuidade ...

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  2. Fiquei muito tenso. Meu Deus! Quanta gente certamente passa por isso nas grandes cidades

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  3. Já estou ficando viciado! Imagine!! Que imaginação, que linguajar, que desdobramentos mais inesperados. Alma de escritor que acorda tão tarde!! Quer dizer, depois de tanta vida corrida!!!

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