O sorriso triste do Zé Correia...

 

Pode parecer coisa tola para vocês. Para mim, é muito importante. O que vou lhes contar não acontece todos os dias. Quem conheceu o Zé Correia como eu, sabe que existe pouca gente feito ele. E não é tanto por causa das ideias dele, não. Houve outros que pensaram da mesma maneira. É, mas era tudo pessoal de importância, doutores, professores, até santos. Zé Correia não era nada disso. E daí porque eu acho muito importante tudo isso que vou contar.

Pra começar, preciso dizer o que o povo pensava dele. Alguns achavam que ele era meio maluco. Talvez fosse, não sei. Deus é quem sabe. Outros achavam que ele fazia aquilo para chamar a atenção, um jeito de fazer com que as pessoas olhassem para ele e lhe dessem valor. Mas estes estavam errados, posso garantir. Não posso dizer que ele fosse inteiramente certo da cabeça, mas posso jurar que, aquilo que ele falava, a maneira como agia diante de todo mundo, era exatamente a mesma coisa que ele falava e fazia quando estava sozinho. Digo isso, porque tirei a prova. Um dia andei atrás dele até descobrir onde morava. Morava não é bem o termo. Onde se escondia, isso sim. Era numa choça que todo mundo pensava estar abandonada, lá nos terrenos da Prefeitura, no alto do morro da Consolação. E foi lá que eu o vi, sozinho, sem ninguém mais a quem tivesse que se mostrar, falando e andando do mesmo jeito que andava por toda parte.

Está certo, vagabundo, sim. Não trabalhava mesmo. Com aquela parte de meio tantã, ele ganhava tudo o que precisava. O que era muito pouco. Comida para cada dia, um paletó velho, de vez em quando umas calças meio rotas, não fazia questão de nada. Ganhava o que lhe dessem e vivia, pelo jeito, muito feliz. Por isso é que eu aceito que o chamem de vagabundo. Nunca o vi mesmo fazer qualquer serviço, o Zé Correia. Para ganhar dinheiro, quero dizer. Nem um carreto, nem uma capinada no jardim das casas da gente rica. Só fazia favores. Tudo o que lhe pedissem, amigos ou desconhecidos. Estes logo se tornavam amigos dele, para aproveitarem a sua boa vontade. E nunca pedia coisa alguma em troca. Se lhe ofereciam, muito bem. Se não, era a mesma coisa. Tinha um coração de ouro, o fulano.

Aceito também que chamassem de engraçado. Quem o visse caminhar curvado, sempre olhando para o chão, ia pensar que ele estava escolhendo cuidadosamente o lugar onde ia por o próximo passo. E ganharia uma aposta se a fizesse com alguém que não morasse na cidade. Porque todas as pessoas que conheciam o Zé sabiam que era isso mesmo que ele estava sempre fazendo. Tomava um cuidado louco com o próprio modo de caminhar. Por isso é que já estava ficando meio corcunda, o coitado. Mas o mais engraçado não era vê-lo andar assim, curvado. O que fazia a gente rir, mas rir mesmo quando o observava, era o que acontecia quando ele ia pondo o pé num lugar qualquer e, de repente, no meio do passo, desconfiava que ia pisar numa formiga, numa aranha, num bicho qualquer! Aí ele dava um movimento brusco, para o lado ou para a frente, a fim de não matar o tal. Era muito engraçado. Aliás, era por isso mesmo que o Zé andava curvado o tempo todo. Tinha um respeito para com os bichos, com qualquer inseto, que era de admirar!

E era sobre isso que ele falava. Alguém lhe havia contado a história de um doutor africano. Não, não era africano. Era alemão, acho. Tinha vivido na África, isto sim. Ele costumava dizer que é preciso ter reverência pela vida, assim como as pessoas têm reverência a um padre ou a um pastor. O tal alemão havia passado quase a metade da vida como médico entre os africanos, procurando ajudar o povo de lá, quando estes ainda não tinham os seus próprios doutores. Zé Correia tinha ouvido falar desse homem e havia ficado encantado! Acho que, embora meio exageradamente, ele havia aprendido história melhor que o povo de lá. Praticava o mesmo cuidado para com todos os seres vivos, tanto os animais como as pessoas.

Quem conversasse com o Zé, sem dar muita importância àquele jeito estranho de ele andar, não ia dizer que ele tinha um parafuso meio solto. Sabia conversar, o homem. Explicava suas ideias, defendia o que pensava e, quando alguém lhe fazia uma pergunta mais difícil, não ficava enfiado. Geralmente respondia com outra pergunta mais difícil, e quem ficava sem saber o que dizer era a pessoa que queria discutir com ele.

Não me esqueço do dia em que a diretora do Grupo Escolar passou pela praça e veio me perguntar se eu podia fazer uns serviços para ela na escola. O Zé já estava lá, quando ela chegou. Quando eu perguntei a ela se já o conhecia, foi ele quem provocou o assunto. Perguntou à D. Zica se ela acreditava que os animais tinham alma. A professora caiu na bobagem de dizer que não, e ele começou uma conversa tão cheia de explicações encarreiradas umas nas outras que eles ficaram ali um tempão. D. Zica até perdeu a hora do almoço. Não sei se o Zé acreditava que eles tinham alma, não. Ele queria mesmo era mostrar à professora que todos os seres vivos têm muita vontade de viver, que esta vontade tem de ser respeitada, porque foi Deus mesmo quem colocou esta vontade dentro dos bichos.

A diretora tentou escapulir umas duas ou três vezes, mas o Zé Correia voltava com outra pergunta mais difícil e ela não conseguia sair da enrascada. No fim das contas, ela chegou mesmo a concordar com ele. Disse que talvez essa fosse a melhor de todas as razões para a gente ser bondoso. Afinal, se Deus realmente amava a todos os seres que ele próprio tinha criado, com tal vontade de viver por dentro, então não havia escape. Ela não saiu andando feito o Zé - e nem eu ando assim! - mas desde aquele dia, D. Zica e eu passamos a olhar para todos os bichos, mesmo os insetos, com outros olhos. Eu só os mato se não houver jeito ou se tiver necessidade.

E era assim com todo mundo. O Zé sabia mesmo convencer a gente.

Tinha um argumento de que ninguém escapava. Acho que era muito inteligente o homem. Até demais. Por isso é que não conseguia viver como nós vivemos. Daí que muitas vezes ele saía mal. Queria que todas as pessoas pensassem como ele.

Um dia, o Neca Almeida entrou na praça puxando a carroça pelo cabresto do animal. Como sempre, tinha posto nela uma carga maior do que devia. O pobre do burro estava com as pernas quase arriadas, bufando, depois de subir a ladeira que vem lá do rio. Quando chegou no meio da praça, parou. Parou, que não ia mesmo para a frente. E eu, se fosse ele, acho que pararia também. A gente tem que reconhecer que o Neca era mesmo desalmado. Se combinava com alguém de fazer um carreto, cobrava o máximo que podia e procurava fazer o serviço o mais depressa possível e ficar livre para outros trabalhos. Quem sofria com isso era o burro, lutando com a sobrecarga. E o Neca de chicote, em cima dele! Dava até pena. O bicho suava e fazia força, mas a carroça não saía do lugar. Devia ter parado com a roda em alguma brecha no calçamento, talvez.

Daí que o Zé Correia foi lá se meter. Com aquele jeito gozado de andar, chegou lá e começou a pedir ao Neca que não fizesse aquilo. Era uma judiação, não sei o que mais. Não ouvi o princípio da conversa porque eu estava longe. Só sei que dali a pouco o Zé estava gritando, chamando o Neca de covarde, dizendo que os animais são nossos irmãos, coisa assim.

- Irmão de burro é você, gritou o carroceiro. E partiu para cima dele, de chicote e tudo. Zé Correia ficou todo lanhado. Veio o cabo Arnaldo, acabou com a arruaça, quase prendeu o Neca. Não é que eu esteja criticando o Zé, não. Sabe, a gente deve ter as suas ideias, mas não se deve meter no caminho alheio. Afinal, o que é que a gente tem com isso? O burro era do Neca. O Zé não tinha que se meter. Vocês não acham que eu estou certo?

Quem fez o Zé ficar mais contente foi o padre Emiliano no dia em que voltou da Itália. Passou por lá uns três meses, conhecendo todos aqueles lugares. No dia em que ele estava engraxando as botas com o Luquinhas, o Zé veio passando. O padre o chamou e disse que havia estado em Assis. A cara do homem iluminou-se. Parecia que ele tinha visto um anjo. Pediu notícias. Queria saber como era o lugar, como o padre havia sido recebido na terra de São Francisco, seu santo predileto. Sim, porque era lógico que o Zé fosse devoto de São Francisco. Não o de Pádua, nem o de Sales. O de Assis, justamente. Não era ele quem chamava a todas as criaturas de seus irmãos e de suas irmãs? Era ele mesmo! Tinha um cuidado muito grande mesmo para com os animais. Diziam que ele era até capaz de ficar no meio dos bichos bravos que estes não lhe faziam coisa alguma. O homem era mesmo um santo.

O padre Emiliano contou tudo o que tinha visto, todas as histórias que tinha ficado sabendo a respeito de São Francisco. Se ele tivesse ficado na rua contando dessas histórias o dia inteiro, garanto que o Zé Correia ficaria lá também, sem se mexer. Foi a partir desse dia que ele começou a dizer que no dia quatro de outubro a gente precisava fazer uma missa especial, para todos os bichos, as plantas, tudo o que tem vida. É o dia de São Francisco, sabe?

E olha, não pensem que eu não dou razão em parte ao Zé. A gente faz missa para os mortos, que não precisam mais delas. Por que é que a gente não deve fazer também para os vivos, ainda que sejam animais? Não é deles mesmo que a gente vive? Prestem atenção em seus pratos, na outra vez que vocês forem comer. Tudo o que vocês põem ali, já foi um ser vivo, antes. O arroz, a carne, a verdura, tudo. Cada vez que a gente come, devia fazer isso com um respeito muito profundo. Tudo o que está ali, já viveu, Morreu para que a gente vivesse. Então, aí é que eu digo: o Zé tinha razão.

A gente não precisa ser que nem ele, não estou dizendo isso. Afinal, não sou fanático. As manias dele eram por demais. E não se dava conta disso. Saía sempre sofrendo, coitado. Lembro do dia em que ele apareceu com a cabeça cortada, escorrendo sangue. Quem fez a limpeza da ferida foi D. Vitória, a servente do Grupo Escolar. Ela é quem me contou o que aconteceu.

Os filhos do Juca Monteiro e do seu Silveira estavam de bodoque na mão, lá para os lados do tio. Tinham ido caçar passarinho. Eles já sabiam que o Zé não gostava destas coisas, e por isso procuravam sempre dar um jeito de ele não perceber o que iam fazer. Davam a volta pelo quarteirão, passavam por detrás da sacristia, desciam pela rua do Porto e entravam no bambuzal. Naquele dia, porém, eles não sabiam que o Zé tinha ido para lá primeiro. Estava por ali, olhando o rio. Então ele ouviu as pedras caindo no chão e os meninos falando uns para os outros que a corruíra tinha escapado. Aí, ele começou a fazer um barulhão danado. Bateu com uma cana nos bambus, e voou tudo quanto foi passarinho. Não ficou um só para os meninos derrubarem. Eles ficaram com uma raiva danada. Mas acho que teriam ficado só nisso e nos nomes que falaram, se o Zé não tivesse ido para o lado deles e começado a pregar um sermão, chamando os garotos de malvados, dizendo que não podiam fazer aquilo, que era uma covardia, que ia contar para os pais deles. Está claro que se ele tivesse contado, nem o Juca nem o seu Silveira teriam feito coisa alguma. Eles mesmos gostavam de caçar de vez em quando. Mas os meninos ficaram furiosos. Não sei qual deles começou, só sei que tacaram pedra no pobre do Zé. Machucaram o coitado de um jeito que fazia dó. Especialmente aquele buraco na cabeça dele. D. Vitória disse que seria bom dar uns pontos, mas não tinha ninguém no posto de saúde para fazer isso naquela hora. O jeito foi juntar a pele com esparadrapo da enfermaria do Grupo. Foi por causa disso que o Zé ficou com aquela cicatriz tão feia.

Até que eu tenho saudade do Zé Correia. Aprendi a gostar dele e fiquei muito triste quando ele morreu. Todo mundo, aliás, ficou penalizado. Até mesmo o Lobato. A sorte dele foi que estava junto com o Tenório e o Tião Vieira e eles serviram de testemunhas quando foi do julgamento. Ele acertou no Zé sem querer. Vou contar como foi.

O Zé ficou sabendo, não sei por quem, que o Lobato, o Tenório e o Tião Vieira iam caçar. Naquele tempo a gente ainda via alguns bichos por esta zona. Dava tatu, coelho e mesmo uma paca, de vez em quando. O Zé ficou escondido em algum lugar e esperou que os três passassem. Então começou a seguir o grupo. Ninguém sabe a partir de que lugar ele principiou a andar atrás deles. Quando entraram no mato o Zé certamente os acompanhou, escondido. Ficaram muito tempo por lá, andaram de um lado para outro, mas não chegaram mesmo a ver caça. Estavam sem nenhum cachorro para os ajudar. Foi então que eles viram, sabem o que? Um veado, coisa desaparecida não se sabe há quantos anos! Ficaram malucos! O bicho estava deitado perto de uma árvore. Parece que tinha uma pata machucada, não conseguia andar direito. O Lobato era o único que tinha uma espingarda de calibre grosso, suficiente para uma caça daquele tamanho. Os três ficaram muito quietos e ele dormiu na pontaria. Foi na hora mesma em que ele atirou que o Zé Correia atravessou na frente do bicho! Lobato disse que nem viu direito o que havia acontecido. Quando os três correram, o veado tinha sumido e o Zé estava lá, de bruços, caído no chão.

Foi muito triste, todo mundo achou. Quero dizer, acho que ninguém chegou ao ponto de chorar pelo Zé Correia. Todo mundo gostava dele, mas não havia mesmo nenhum parente ou amigo mais chegado que o chorasse.

Quem sofreu mais com a morte dele, foi o pobre do Lobato. Ele contou que na hora em que eles chegaram perto e viraram o Zé, ele ainda vivia. Estava todo ensanguentado e mal respirava. Foi o que ele disse naquela hora que fez o Lobato se arrepiar todo e foi isso também que me deu vontade de contar esta história para vocês. Enquanto o Lobato segurava o Zé, meio inclinado, o moribundo disse, meio com um sorriso triste no rosto :

- Obrigado, Lobato. Vou morrer que nem Jesus. Tô morrendo no lugar de quem não podia morrer.

E então, morreu, sem deixar de sorrir…

 

 

Comentários

  1. Muito bom ! A gente sempre lembra de alguém parecido ......

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    1. Sim, claro. A vida se repete com as necessárias alterações!

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