Corrente corrente

 

Corrente corrente

 

... está liquidado!


As palavras do auditor soaram a Genésio com a força de uma sentença de prisão. Para que havia se associado a Frederico? Desde o dia em que haviam combinado montar a firma, algo lhe dizia lá no fundo, espécie assim de intuição, que as coisas não iam dar certo. O outro havia lhe apresentado toda a sorte de cartas de recomendação, atestados de idoneidade moral e financeira, uma porção de documentos. As dúvidas amainaram, mas não desapareceram de todo. Lá dentro permaneceu sempre aquela sensação estranha de ameaça de insucesso.


Dito e feito. Estava na bancarrota. Como é que havia sido enganado por tanto tempo? As retiradas do sócio, encobertas pelo contador desonesto e só agora percebidas, o haviam deixado absolutamente sem fundos para pagar os compromissos da empresa. Estava falido, simplesmente falido!


A princípio resistiu bravamente. Nunca algo semelhante lhe tinha acontecido. Julgava-se bastante forte para suportar o embate. Aos poucos amigos que possuía contava o caso sempre com uma nota de confiança. O dia de amanhã traz sempre uma nota de esperança. Não dizem que ela é a última que morre? Com o tempo, no entanto, o desânimo foi tomando conta de Genésio. Como iniciar outra vez? E o crédito perdido? E a falta de lastro?


Naquela noite ele saiu andando sem rumo. Entrou no primeiro bar que encontrou e pediu o que nunca havia pedido. A mais forte de todas as cachaças. Quem sabe se bebendo um pouco aquela sensação de fracasso total diminuísse, aliviando a pressão? Do primeiro copo ao sexto foi uma questão de tempo e de gradual inconsciência de estar se embebedando.


Os três que entraram no bar, dois brancos e um mulato, não perderam tempo. Renderam o proprietário português e botaram todo mundo de mãos para o ar. Enquanto um apanhava a féria do dia, o outro ia recolhendo da meia dúzia de sujeitos que ali estava qualquer coisa que tivessem de valor: carteira, relógio, anel, tudo servia. E foi aí que Genésio se modificou. De abatido partiu para a valentia. Achou ruim, quis brigar, levou uma coronhada que lhe rachou a testa.


- E você tem sorte de não levar um tiro, meu chapa.


A trinca saiu, chegou a polícia! Como sempre.


No dia seguinte, a notícia estava sendo lida em Nova Iguaçu: "Por volta das vinte e uma horas de ontem, três bandidos assaltaram o Bar do Porto, localizado à rua Cardoso Ferreira, 93, em Realengo, de propriedade de Venâncio Gomes, de nacionalidade portuguesa. Além de roubarem toda a féria do dia e todos os clientes, os ladrões agrediram a Genésio de Sá..."


O resto não tinha importância para Madalena. Havia descoberto o marido fujão! Viva a vida! É mais fácil pegar um mentiroso que um coxo! Venâncio não é nome tão comum. Associado a Gomes, outra coincidência. Dono de bar, como o cara que a tinha abandonado desde 2015, há cinco anos passados. E ainda por cima, português. Não havia dúvida. Só podia ser ele. E a sorte era muita: lá estava o endereço, sim senhor!


Quando a mulher lhe apareceu à porta do bar, Venâncio não sabia o que dizer. Quando a deixou, tinha dito que ia para São Paulo tentar melhorar de vida com o auxílio de alguns parentes recém chegados de Moçambique, cheios da grana... Como é que ela o tinha descoberto?


- Cachorro! Ordinário! Me largou com três bonecos e deu no pé! Seu patife! Filho da puta! Você pensou que eu não o encontraria mais, não é? Aposto que a cadela da Glória está com você! Sai daí de trás, vem apanhar aqui na rua, seu desgraçado!


Os fregueses olhavam entre perplexos e divertidos a cena que se desenrolava. Um tinha levado o pau ali mesmo no dia anterior. Haveria morte hoje? Seu Gomes pedia à mulher para falar baixo, prometia que ia à casa dela hoje mesmo, que ia dar explicações, inventou histórias, nada aplacava a ira de Madalena. Durante cinco anos ela tinha amargado fome, miséria, doença, sem um auxílio sequer do marido desaparecido. Como descarregar em uns poucos minutos toda a frustração, todo o desencanto de um casamento que tinha sido a princípio tão feliz e havia se transformado em um inferno terreno?


Alguns queriam intervir a favor do português. Era homem bom, o Gomes. Fiava para os conhecidos e não era difícil entrar para o círculo destes. Outros diziam que ninguém deve se meter em briga de marido e mulher. O problema é que a coisa estava ficando perigosa mesmo. Madalena já tinha um revólver nas mãos. Estava possessa!


Um dos fregueses saiu de fininho sem falar nada com os outros. Se escondeu em um canto e chamou a polícia.


Cabo Honório não teve tempo de segurar a mulher. Os dois disparos o atingiram em pleno peito. Caiu duro.


Bem que Marília tinha pedido ao marido que deixasse a farda. Era profissão perigosa. Sabia que isso podia acontecer a qualquer momento. Tanto tinha falado, tanto tinha pedido, que o marido finalmente tomou a decisão. Ia procurar qualquer coisa primeiro. Já tinha até conversado com alguns conhecidos em busca de emprego. Pretendia dar baixa, quem sabe, no mês que vem.


Agora estava ali, ainda de farda, estendido no caixão, cercado de outros policiais, cujas esposas, provavelmente, tinham lhes pedido a mesma coisa. De que adiantavam as coroas mandadas pelo comandante, pelos colegas, a citação de honra? Já sabia que na hora em que o corpo fosse enterrado ia ser toda aquela cerimônia de enterro de militar. As salvas de tiros, as continências. Mas de que valeria tudo isso? Quem ia servir de pai para o filho que ela trazia na barriga? E as outras duas crianças, agora órfãs, que andavam no meio daquela gente toda, sem entenderem bem o que estava acontecendo? Que seria delas? E ela, sozinha, sem um parente sequer no Rio, ela que dali a cinco meses ia dar à luz?


O pior foi à noite. Um amargor na boca. Uma vontade de morrer também sem o seu querido Honório... Pôs as crianças na cama, chorando sem poder se controlar, os meninos não entendiam porque a mãe estava daquele jeito, porque o pai não voltava para casa, a fim de ficar com eles como todos os dias. D. Maria das Dores, da casa vizinha, paredes meias, bateu à porta. Marília secou as lágrimas e foi atender.


- Vim ficar com você esta noite.


Era uma destas criaturas que sabia compreender o drama das pessoas. Não falava muito. Até era meio caladona. Tinha, no entanto, uma notável capacidade de se fazer presente. Silenciosamente. Confortava a qualquer aflito com a sua sapiência de fazer um café, quando um café era necessário, de ajudar a por em ordem o que estivesse em desarranjo. E não adiantava dizer muito obrigado, não precisa. Ela sabia que era necessária e de que maneira era necessária. Se havia dito que passaria a noite ali com Marília, é porque sabia ser isto necessário para a viúva. Foi aceita sem discussões.


Ela mesma descobriu onde estava a roupa de cama. Arrumou o sofá e se dispôs a dormir ali mesmo. Não havia porque preocupar-se. Tudo estava em ordem na sua própria casa. Iria cedinho para fazer o café e despedir o marido para o serviço.


Seriam as três da madrugada quando seu Paulo sentiu precisão de ir ao banheiro. Não havia mais ninguém em casa, pois a esposa tinha ido dormir com a vizinha enviuvada. O caso, porém, é que ele fechou a porta do banheiro à chave. Foi um gesto automático, é claro. E só depois que o fez é que se deu conta da mancada. Há muito tempo devia ter mandado consertar aquela fechadura. Quem a trancasse por dentro, só podia sair se passasse a chave por debaixo da porta para quem estivesse do lado de fora. Como ali só moravam os dois, marido e mulher, quase nunca davam a volta na chave. Nas raras vezes em que isto acontecia, bem, era só um chamar o outro.


Resolveu não se alarmar. Daria um jeito. Fez o que tinha que fazer e começou a tentar abrir a porta. Virou a chave para lá, virou para cá. Em certas tentativas tinha a impressão de que a ponta da chave ficara firme nos ferrolhosinhos escondidos da misteriosa fechadura. Abaixava o trinco e, nada! Engano. No princípio o fracasso não atingiu a sua moral. Depois de uns bons dez minutos naquela brincadeira, no entanto, já passava por uma série alternada de estados de espírito: frustração-raiva-desespero-abatimento; frustração-raiva-desespero-abatimento...


Aí teve a triste ideia de chamar a mulher. A casa vizinha era colada à sua. As paredes eram finas. D. Maria tinha o sono leve. Certamente acordaria logo.


- Maria, Maria, cê tá me escutando? Dá para ouvir daí? Maria! Ô Maria! Esta mulher não acorda! Maria, cê tá me ouvindo? Estou preso aqui. Vem me soltar! Ô Maria! Acorda!


Quem acordou? A viúva!


O marido a estava chamando! No meio da noite! Bem que uma vez ele havia andado mexendo com assuntos de religião, sem entender muito do assunto. Tinha lido uns livros emprestados e disse à mulher que se morresse antes dela ia tentar mandar-lhe uma mensagem lá do outro mundo. E não tinha mentido. Na mesma noite do sepultamento já estava chamando seu nome!


- Marília, Marília, cê tá me escutando? Dá para ouvir daí? Marília! Ô Marília! Esta mulher não acorda! Marília, cê tá me ouvindo? Estou preso aqui! Vem me soltar! Ô Marília! Acorda!


- D. Maria, o Honório está me chamando, lá da sepultura! Diz que está preso, para eu ir soltar ele! Ai! Meu Deus! Perguntou se dava para eu escutar ele. Tá com una voz esquisita, ai! Será que ele morreu de fato? Será que não foi enterrado vivo?


Seu Paulo se calou. Percebeu que a voz não vinha da sala da vizinha, onde a mulher havia dito que ia dormir, mas do quarto da viúva. Que azar! Além de preso no banheiro, tinha acordado a moça, logo ela que precisava tanto descansar naquele dia triste!


D. Maria ficou em silêncio. Não acreditava nestas coisas, era católica de firmes convicções. Mas tentou ver se ouvia alguma coisa.


- Olha, minha filha, você teve um pesadelo, certamente. Os mortos não falam. Você bem sabe que o Honório está morto, mesmo. Esse negócio de enterro de gente viva só pode acontecer com quem tem certas doenças que dão ataques. Seu marido não tinha nada disso. Além do mais, você sabe que ele levou um tiro no coração. Não houve tempo nem para ser operado. Vai se deitar. Isto é impressão. Foi bom eu ter vindo passar a noite com você, não disse? Se não tivesse vindo, você ia ficar aí, angustiada. Vai se deitar, vamos, não se impressione com estes sonhos.


- Não foi sonho, D. Maria, eu estava acordada. Ouvi claramente. Havia mesmo o som de umas pancadas na parede! Estou arrepiada!


Seu Paulo percebeu que se continuasse a tentar chamar a esposa, iria fazer muita confusão. Por sorte, D. Maria guardava no banheiro uma cama dobrável, de reserva para as ocasiões em que o filho os visitava. Não dava para abrir no banheiro, mas pelo menos ele podia deitar no chão, encolhido sobre o colchonete dobrado ao meio. Por cobertas apanhou umas toalhas de banho no armário e se ajeitou para o resto da noite.


D. Marília, fosse por seu temperamento natural, fosse pelas emoções da gravidez, fosse pelos acontecimentos do dia, estava nervosíssima! Ainda mais agora, depois que o marido a tinha chamado. Só depois de umas duas horas naquela aflição, após ter tornado um calmante, é que ela conseguiu dormir. D. Maria tinha ficado a seu lado todo o tempo. Quando a viúva adormeceu, ela se levantou e olhou o relógio. Ainda dava tempo para uma meia hora de descanso, recostada no sofá. Claro, não devia cair no sono. Dali a meia hora tinha que chamar o marido para o serviço.


Não devia cair, certo, mas que caiu no sono, caiu! Quando deu por si, já passava das seis horas. Acordou assustada, saiu pé ante pé, e correu para casa. Felizmente o marido já não estava na cama. Estava no banheiro, fazendo a barba, certamente.


Foi para a cozinha preparar o café. Deixou a água esquentando, correu à padaria da esquina, gastou nisso uns dez minutos, se não mais. O marido no banheiro.


- Paulo, você está demorando demais. Vai perder o subúrbio.


Silêncio.


- Paulo, ô Paulo!


A voz que ouviu lá de dentro era esquisita, como de alguém machucado. Parecia um gemido. Ou era gente acordando? Não dava para distinguir bem. Forçou a porta, mas esta não se abriu. Estava trancada por dentro!


Até que seu Paulo acordasse de todo, percebesse a situação, passasse a chave por debaixo da porta para que a mulher a abrisse e então, somente então, explicasse tudo, passaram-se momentos preciosos. Todo este tempo perdido, somado ao gasto para trocar de roupa, tomar café e sair – mesmo sem fazer a barba que não havia jeito hoje – foi o suficiente para que ele perdesse o trem. E chegasse atrasado à firma!


- Logo hoje, D. Lia. Logo hoje, eu que chego sempre antes da hora. Logo hoje é que o Dr. Climério chegou mais cedo que todos os empregados, ficou vigiando o relógio e me pegou em atraso. Tentei explicar tudo. Contei a história, ele não acreditou. Disse que além de chegar tarde, eu era um grande mentiroso. Sabe o quê, D. Lia? Me mandou embora! Estou com três anos, de casa. Nunca faltei ao trabalho. Nunca cheguei atrasado. Cumpro com os meus deveres. E o homem achou hoje a oportunidade que queria a fim de me pôr para fora. Eu bem sabia que ele estava querendo arranjar um lugar para o sobrinho dele aqui. É aquele rapaz que veio cá, na semana passada. Estou roubado. D. Lia. Perder o emprego assim não é mole neste ano de alta inflação. Já pensou como é que eu vou ficar agora? Arranjar outro na minha idade não é fácil. Tudo porque a Maria teve a bendita ideia de ir passar a noite na casa da vizinha. Ah! Coitada, estou sendo injusto. A moça precisava. É tudo uma questão de azar, uma questão de azar, D. Lia...


A secretária o ouvia. Mas estava longe dali. Pensava no Ernesto, seu namorado, que também estava desempregado. E se conseguisse convencer o patrão a colocar o rapaz no lugar do seu Paulo? Não custava tentar...

Comentários

  1. Respostas
    1. Tem mais alguma coisa no forno... Não devo correr. Quem sabe um conto por semana, está bem?

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  2. Adorei esse conto!! O nome é perfeito pra essa construção fluida de eventos e personagens!

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    1. Obrigado por seu comentário, ainda que feito anonimamente! Que bom que você gostou!

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  3. Está difícil explicar essa vocação tardia!! Fernando Sabino ou Machado de Assis?

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  4. Gostei ! É dramatico e ao mesmo tempo engraçado !!

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